Cio

Imagem gerada por IA. Desenho de dois garotos sentados em cima de um predaço de muro de tijolos, cada um olhando para um lado diferente, de costas um para o outro. Ao fundo, uma paisagem árida. Os garotos estão com um sorriso nos rostos e ao lado de cada um deles, duas pequenas frases escritas. Zinho, só! e Verdade, né não?
Zé e Artur - Imagem gerada por IA

Zé, como era conhecido Zerci - vai saber de onde Seu Zolano e Dona Erci tiraram esse nome - estava papeando com Artur atrás de casa. 

Apesar de todos os gritos que já tinham levado das mães e dos pais, os dois  grandes amigos estavam sentados no muro que fazia divisa entre os quintais onde brincavam desde criança. E isso já faz é tempo. Suas pernas balançavam, calcanhares batendo no reboco teimoso que ainda se segurava naquela parede caquética. Ela permanecia de pé, apesar de todas as boladas que tomava dia após dia.

Eles estavam dispostos como naqueles bancos chamados de "namoradeira", "tête-à-tête" ou como quer que queiram chamá-lo. Arthur de costas para o seu quintal e Zé de costas para o seu. Não o seu quintal, leitor; "o seu", deles. Braço direito de um quase tocando o braço direito do outro. Uma pedra na mão de um. Um graveto na do outro.

Zé quebra a quietude.

- Zinho, só.
- Ah, companh... Antes só que com Mal.
- O que ela tem a ver com isso, homem!? Perguntou, Zé, intrigado.
- Ela quem?
- A Mal.
- Mal? Qual Mal?
- Achei que você falava de uma pessoa. Você disse "antes só que com Mal".
- Ah, não. Não é de uma pessoa que eu tava falando. Se mal que eu conheço uma.
- Como?
- Não, não tá na hora. Ainda tá crua.
- O que está crua?
- A massa que Mãe está preparando.
- Mas, e quem está falando de comida, cara?
- Achei que era você. Você que me perguntou se podia comer.

Artur, filho de Seu Artêmis e Dona Úrsula, tinha uma característica intrigante. Falava sempre sério, mesmo quando estava brincando. Tinha um semblante e um ar tão sério que, na maioria das vezes, nem ele mesmo percebia quando estava brincando. 

Ele se perdia nas voltas dos papos e acabava esquecendo sobre o que conversava. Esquecia das brincadeiras que estava fazendo e levava tudo ao pé da letra, seriamente, fazendo com que a conversa perdesse o sentido. Só que Zé não ficava muito atrás e era bem parecido com o amigo nesse sentido. Por isso, talvez, se dessem tão bem.

- Artur, você tá fazendo aquilo de novo.
- Aquilo o que, homem?
- Esquecendo que estamos conversado sobre coisas leves, nada sério demais.
- Ah, verdade. Desculpe, Zé. Como tão as penas?
- Penas?
- Sim, as coisas leves de que a gente tava falando.

Neste exato momento Zé revê a carimbamba que corria ao longe, voltando ao seu ninho rasteiro, bem na beira da vegetação ressequida pela falta de chuvas na estação.

- Vixe, o bacurauzinho acabou de voltar. O que será que fazia sozinho?
- Sei lá, mas como eu disse, é melhor assim que tá em má companhia.
- Que não é o nosso caso, né não?
- Verdade, né não?

E sorriram ao mesmo tempo, sem nem se olharem.

Assim, diferentemente da ave que dizia, na noite anterior e começava a dizer agora, "Amanhã eu vou", caçando uma parceira, os dois amigos se calaram, satisfeitos com o papo e com o observar o dia quente se transformar em noite serena, mas não tão silenciosa quanto eles.

O canto cioso dos pássaros e dos insetos noturnos das redondezas iria dar continuidade à sinfonia diurna feita pelas patativas, golinhas, galos-de-campinas, tesourões e muitos outros passarinhos locais, que já finalizavam seus trabalhos e passavam, aos poucos, a batuta adiante.

Quem sabe aquela massa que Dona Úrsula estava fazendo já tinha se transformado em algo delicioso. Amicíssima de Dona Erci, ela certamente daria um pedaço à família vizinha e ambos poderiam desfrutar da mesma coisa na janta que se aproximava, anunciada pelo som que seus estômagos faziam... Era nisso que ambos pensavam simultaneamente, sem se darem conta, mas um tendo a certeza que o outro pensava na mesma coisa.

Quase ao mesmo tempo em que se despediriam sem dizer mais nada, naquela cumplicidade que só grandes corações que se amam compartilham, Zé lembrou de algo e falou:

- Silên...
- Cio. 

Finalizou Artur.

E o cheiro do pão saindo do forno atingiu os dois ao mesmo tempo que pulavam do muro.

Mackenzie Melo
Começado 14 abril 2021
Terminado 05 abril 2024
Postado 06 abril 2024

P.s.1: texto começado em 14 de abril de 2021 por volta do meio dia e salvo como rascunho. Tinha me esquecido dele e o reencontrei quando fui olhar os rascunhos salvos no blog. Na retomada EstradaPara50, decidi terminá-lo e publicá-lo.
P.s.2: enquanto vou continuando com a história, que tinha apenas algumas linhas e parava em 'Você disse: antes só que com Mal', percebo que esqueci o motivo de ter dado o título provisório de Cio. Quem sabe descubro à medida que for escrevendo?
P.s.3: acabei de lembrar. Mas vocês já sabem, pois já terminaram de ler o texto. Só quando chegarem aqui, entretanto, é que saberão que eu não sabia e depois soube, ou melhor, não lembrava e depois lembrei.😊
P.s.4: ia mudar o título, mas mudei de ideia e deixei o título original.

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